segunda-feira, janeiro 31, 2005

Sangue

Como se a história fosse terminar no momento exacto, decido contar a mim mesmo a última das aventuras, começo por me olhar ao espelho e penso em mim, como pude já eu sorrir ou chorar, contemplar e ignorar certas pessoas, fechar e abrir os olhos em constante delírio?
Penso na forma mais eficaz de terminar a histórias, o conta-gotas do meu pulso ferido poderia ser uma boa maneira, o lento escorrer do sangue que se acumula num conjunto de gotas, num aglomerado de lágrimas que sou eu, que são a minha vida, o lento escorrer da vida para fora de mim, como se uma fuga à luz do dia se tratasse.
Lembro cada nome e cada personagem ao lento bater do sangue, digo os nomes todos de trás para a frente e recordo-os com saudade, a saudade de quem já esqueceu alguns momentos, mas que traz à força inconsciente das memórias que não quer lembrar, um peso que ninguém vê, um poder que ninguém sente, um sonho que ninguém se atreve a sonhar, os pesadelos de vos lembrar a todos com a nítida noção de me apetecer fugir daqui...
Feridas abertas no pulso que trazem de volta as feridas abertas dentro da minha cabeça, fragmentos de corações e olhares que nunca mais voltam a juntar-se, promessas e juras que nunca se cumprem, sabores e cheiros que voltam ao ambiente sem que eu peça ou queira, a força de abraços e corpos unidos, o pulso aberto, a alma aberta a si mesma, lágrimas que se choram a si mesmas com vontade de perguntar "porquê?".
Lentamente e gota após gota sinto a força abandonar as minhas pernas, baixo-me e tento não parecer demasiado penitente quando encontrar a minha própria terminologia, passo as mãos pelos cabelos e lavo-os de sangue, sou eu todo por fora como era por dentro, sou a mistura de hemoglobina e plasma, sou o fantasma do líquido da vida, sou 180º graus menos eu e sou uma volta completa a mim mesmo, uma volta que acaba no mesmo sítio quer eu seja diferente ou seja exactamente igual, sou vermelho e acabo por ser branco de vazio, de ausência total e abertura a ser qualquer coisa menos isto...menos o nada que acaba e começa sempre no branco.
Sou também o ruído lento e baixo da minha própria dor que se consome a si mesma e me deixa cada vez mais tonto, sou a tortura implícita e inadmíssivel do meu próprio ser que se deixa consumir em fogos que não ardem e não estalam quando me comem a carne, sou o branco, a ausência de existência, sou o consumir de branco pelo fogo...sou futuro negro e cinza que voa ao vento, sem destino ou qualquer relevância.
Nessa mistura de barulho, os olhos fecham e abrem com o som de fundo das gotas de sangue, uma última vez tento perceber onde é que errei e onde é que fiz tudo bem, pergunto a mim mesmo se estou contente comigo mesmo, se deixei alguém feliz nesta vida, se mostrei a felicidade e se fiz alguém acreditar no mundo, acredito que sim e as lágrimas escorrem-me com saudade de te fazer feliz, de te deixar a sorrir...ao contrário eu choro, as lágrimas queimam-me as feridas e o seu sal é como o último castigo, como o último grito antes de morrer, o respirar fundo antes de mergulhar...
Sou branco, sou hemoglobina e plasma, sou nada, sou uma mistura de tanto que se funde e perde em si mesma...finalmente caio e tombo no chão.
Coberto de vermelho, deixo sair a vida por um pulso, o mesmo que escreveu a última aventura do meu ser, tudo tinha de terminar por aí...sou branco, mas deixo o nome escrito a vermelho, de vida e de morte....sou branco escrito a vermelho, sou futuro cinza e negro, sou alma ao vento, buraco de existência e ausência de dor...
Sou sangue no chão...era eu.